terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Descaso da sáude pública no Piauí




 Depoimento de Carlienne Carpaso





      13 de janeiro de 2013, noite de domingo. Cheguei ao Hospital de Urgência de Teresina (HUT) pulando somente com o pé esquerdo porque havia machucado o direito, não conseguindo caminhar normalmente com os dois pés. Praticamente, às 20horas, a atendente faria o meu cadastro para encaminhar-me ao primeiro médico (Clínico Geral). O cadastro foi rápido, mas não sabia que seria o início de uma noite turbulenta. Um macteiro ou maqueteiro (não sei ao certo – seria ele o homem que direciona as macas de um lado para o outro no HUT) me providenciou uma cadeira de ferro e com rodas, começava o meu triste passeio.
     A recepção estava lotada. Havia pessoas de todas as idades. Sofrimento, desespero, sangue. Algumas deviam estar no local há dias, outras pouco antes ou depois de mim. Do outro lado da recepção a calmaria de mais um domingo de plantão para as atendentes. “É sempre assim”, afirmam. Familiares choravam, outros se desesperavam pela falta de atenção. Junto comigo entravam mais três pessoas: ANA Lucia, Francisco e Eliston (Não sei exatamente se esse era o seu nome, o da sua acompanhante era Iara).
    O caso mais grave era de ANA Lucia, que sentada na porta de casa junto com os seus dois filhos menores, foi atropelada por um carro. O motorista estava alcoolizado e não prestou socorro, comentava sua acompanhante, que, inicialmente, teve sua entrada proibida pelos guardas: “Eu tenho que entrar; quem me garante que ela irá ser atendida”, aclamava, tendo sua entrada permitida após uma troca. No HUT é um acompanhante para cada paciente. No meu caso, foi minha mãe.
    Nos outros, Francisco (que devia ter mais de 50 anos) havia cortado/quebrado o pé. Os cortes eram profundos, bastava seguir os vários rastros de sangue para localizá-lo. Antes de receber os primeiros cuidados médicos para interromper o vazamento, era preciso fazer o cadastro. Dessa forma, colocaram um saco plástico para que o sangue não chegasse ao chão. Já o Eliston estava em uma moto quando desviou de um carro. Uma batida grave foi evitada. No entanto, o pé direito do mesmo teve alguns dedos quebrados.
   Ao ver tanta dor, a minha foi diminuindo. Achava injusto sofrer porque a minha era a menor dali – pelo menos para mim. Não conseguia caminhar – assim como eles – mas era injusto eu me importar somente comigo. A minha mente bloqueou a dor, mas mesmo assim não conseguia andar. “Você tem compaixão”, dizia o radiologista ao me perguntar se eu ainda sentia muita dor, e eu ter respondido o que aqui citei. “Hoje em dia existem poucas pessoas que se importam com a dor alheia”, concluía.
   Nós quatro fomos ao primeiro atendimento. Na ordem: Francisco, ANA Lucia, Eu e Eliston. Passei esse tempo todo segurando a mão de Aninha, como sua mãe (acredito) falava: “Aninha, abre os olhos. Aninha, não dorme”. Eu, em silêncio, pedia o mesmo. Ela, às vezes, apertava minha mão e a levava para junto da sua barriga. Duas desconhecidas faziam leves carinhos uma na mão da outra. ANA, além do braço quebrado, levou uma forte pancada na cabeça. Por isso estava totalmente mobilizada. Os dedos dela estavam sujos: uma mistura de areia e sangue. Na minha, ficou um pouco de seu sofrimento.
   Todos foram para a segunda parte do protocolo: o raio X. Fiquei longe de ANA, mas perto dos demais. Até lá, o maqueteiro me conduzia pelos corredores. Pessoas jogadas nas macas em todos os lados, algumas (muitas) não havia colchões e/ou lençol, e as pessoas se deitavam diretamente no ferro frio delas. (Quem garante que elas haviam sido esterilizadas?). Idosos e adultos, jovens e crianças. Pessoas nuas com apenas o lençol jogado nelas. Tinha gente com os olhos roxos e inchados, pés/braços enfaixados, sondas ou soros. Com cortes na cabeça e no corpo as marcas de uma historia ruim.
   Eles dormiam, mas pareciam mortos. E os meus olhos se enchiam de revolta e indignação, a saúde pública do estado piauiense pede por socorro. Todos reclamam, todos lamentam. Quem entra ali para salvar sua vida, é um guerreiro/uma guerreira. Eu não acreditaria que poderia piorar, mas piorou.
   O pequeno espaço de espera para o exame estava tão lotado quanto à recepção do HUT. Três enfermeiros assistiam um senhor de quase 60 anos segurando o soro com a mão levantada. O paciente do soro era Francisco. Revoltado, Eliston começa a fotografar sem discrição. “Olha só, é preciso o senhor ficar segurando o soro porque não tem onde colocar”, diz. O senhor, acompanhante de Francisco, se desesperou quando o sangue do paciente começou a subir pelo fio do soro. Nada, ninguém se locomoveu. Eu, Iara e Eliston começamos a perguntar se não iriam ajudar.
   Uma enfermeira magrinha de cabelos lisos curtos se levantou furiosa. Fechou a válvula do soro. “Pronto, não precisa mais segurar”, falou com grosseria. Ela vestia um colete verde da Fundação Municipal de Saúde. Antes disso, Iara foi até os dois velhinhos e ficou segurando o soro. Eu virei e perguntei: Por que você fechou? Se ele estava tomando o soro deveria continuar tomando soro. Por que fez isso?. Ela não me respondeu e se retirou do espaço.
    Depois disso, um médico (plantonista) de cabelos grisalhos, de altura mediana, aparentava estar sonolento. Entre nós nos perguntamos: ele estava dormindo? Veio trabalhar com sono? Era muito visível. Esse mesmo “médico”, quando eu estava sendo atendida no Clinica Geral, gritou com minha mãe a mandando sair da frente porque ele queria passar. Ninguém entendeu nada. Ele chegou ao Raio X acompanhado por duas mulheres, o caso da paciente não era grave – aparentemente – era o mesmo que o meu, só que no braço. A paciente se chamava Poliana.
   Ele mesmo entregou o prontuário da moça aos radiologistas. Iara, eu, Eliston e minha mãe estavam ao lado delas. Ao entregar, o médico virou-se para elas e disse: “já que eles chamam”. Nós três – tirando minha mãe – começamos a gritas. Sim, a gritar. “Todos aqui estamos esperando, o caso não é grave. Então não vai tirar a vez de ninguém. Temos nossos direitos. Até mesmo os casos graves estão esperando por sua vez”, dizíamos. Eliston, novamente voltou a gravar. O radiologista – que não foi o que me atendeu – voltou para a sala e chamou a lista “correta”.
   O atendente que recebe as fichas de atendimento era magro, alto, moreno, com pouco cabelo e usava óculos. Ele virou-se para Eliston e disse que era proibido fazer qualquer tipo de gravação. Afinal, o nome do médico estava em jogo. Nome esse que ninguém relatou. Apesar de várias insistências minhas. O Atendente chamou a polícia para que o celular fosse apreendido. Começou uma série de discussões entre nós. E as duas “oportunistas”? Ficaram caladas. Sendo que o radiologista havia chamado discretamente ela para o Raio X. A tática não foi concluída porque minha mãe ficou atrás dela, assim não teve como ir.
   A polícia chegou, minha mãe tomou meu celular e guardou. Chamei os policias, queria o nome do médico. Minha mãe brigou, novamente chamei os policiais, eles fingiram não ouvir. Os celulares não foram levados, eu fui atendida, Eliston demorou muito para ser chamado. Tudo isso porque ele brigou contra a corrupção. Sim, tudo aquilo era corrupção.
   Um novo acidente chegava ao meu conhecimento quando o marqueteiro me retirava da sala –com o raio X em mãos – e me levava ao ortopedista. Um homem estava com “a boca quebrada” e uma camisa ensanguentada evitava que mais sangue saísse pela sua boca. Ele, por um momento, tirou a camisa e um vômito de sangue ocorreu. Na hora da minha saída veio uma enfermeira, gritei: “ei, ei, ele precisa de socorro. Está vomitando sangue”. Cheguei a pegar no seu jaleco, tudo em vão. Ela era magra, alta e de cabelos castanhos lisos.
   Enfim, a última etapa, a sala do gesso. Passei novamente por todos aquelas macas nos corredores. Encontrei seu Francisco a espera na porta. O ortopedista chama meu nome. Ele é meio gordinho, baixo, usa óculos, teve ter menos de 30 anos, tinha cabelos pretos e estava lendo algo muito engraçado no seu celular. Acredito que através da internet. Já passava das 22horas.
   Ele me chama uma vez, não vou. Para mim, seu Francisco deveria ser atendido primeiro. Ele me chama uma segunda vez: “vamos, Carlienne”. Então, sou levada para dentro da sala. Assim que entro questiono: “por que me chamou? O caso do senhor lá fora é mais urgente do que o meu. Ele deveria ser atendido”. Na medicina as pessoas fazem juramento de compaixão, respeito, solidariedade e ética para com os futuros pacientes.
   Esse mesmo médico ortopedista declarou: “Se preocupe com você, pare de se preocupar com os outros”. Essa foi a resposta que tive. Ele olhou por cima o meu exame, perguntou se eu conseguia caminhar, eu disse que não. Não houve toque, ele não olhou precisamente o meu pé. Diagnóstico pronto: sete dias sem por o pé no chão.
   Ele não usava jaleco e estava sorrindo com um amigo também presente na sala. O olhei com raiva, tentando dirigir o que ouvi dele. Percebendo a minha reação negativa, tentou brincar: “tente não se mexer muito porque vai continuar doendo”, falou sorrindo. Eu permaneci calada.
   Os dois funcionários do HUT, na sua simplicidade, colocaram uma tala no meu pé direito. Após concluir o enfaixamento; um deles virou a cadeira para me colocar fora da sala, e o maqueiro me pegaria para levar embora dali. Meu atendimento havia se encerrado. Meu momento de terror acabado, mas todas aquelas outras vidas continuariam ali, como, por exemplo, a da Aninha.
   Eu esqueci o pé imobilizado e o taquei no chão: “espera, quero falar com o médico”. (O gesso ficou torto. Deve ser por isso que ainda sinto dores). Ele largou o celular e me olhou: “Não, eu não me preocupo só comigo. Eu escolhi me preocupar com todos. E, para mim, o senhor deveria ter feito à mesma escolha. É uma irresponsabilidade você se virar e dizer o que disse”, falei. Ele, assustado, disse com ironia: “Eu não cuidei de você”? Eu disse que Não, e sai.

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