quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Memória e identidade em Ribamar Garcia –III



     Hoje publico a crítica literária escrita pelo professor Dílson Lages Monteiro sobre o livro Contos de Minha Terra de Ribamar Garcia, grande  escritor piauiense. O  lançamento desse livro ocorreu no mês de Outubro na livraria entre livros. A obra   uma grande declaração de amor ao Piauí e um retrato de Teresina através da sua gente. Apresenta folclore, humor, ironia e o jeito piauiense de ser.   

 

Memória e identidade em Ribamar Garcia –III

 



    Já se disse abundantemente, por meio das mais diversas teorias, que nós leitores é quem, de fato, controlamos a obra literária. Diante da carga polissêmica e polifônica do tipo de manifestação linguística em que se constitui a literatura, nossos conhecimentos de mundo, nossos conhecimentos técnicos, a experiência de leitura se sobreporiam ao propósito comunicativo do autor, cujo controle sobre a obra seria radicalmente minimizado pela força de múltiplas leituras, pelo tempo e pela história.
    Façamos inicialmente uma  parênteses para discordar dessa assertiva, embora o leitor seja verdadeiramente o grande personagem de  toda e qualquer obra – e disso, às vezes, nem se dê conta. Façamos um  parênteses porque há autores (digo, obras), cujo projeto literário vale tanto quanto o teor das interpretações individuais autorizadas. Ribamar Garcia é um escritor dessa estirpe – o que escreve encontra facilmente ressonância nos leitores. A cada livro, uma promessa convertida em prazer.
    O que materialmente esperamos de uma obra escrita por Garcia, além de seu estilo de lirismo leve e do humor característico? Para responder a essa indagação, não faremos exercício de crítica literária propriamente dita. Não há neste olhar rigor metodológico, nem busca recorrente de aplicar ou comprovar teorias para uma objeto, tampouco o foco na  dimensão linguística dos textos, embora sejamos obrigados , por forças das especificidades da literatura, a tangenciar a dimensão discursiva da obra.
     A leitura aqui é, predominantemente, a do prazer, das formas -sons-cheiros, das impressões de um texto que atinge a emoção dos que viveram ou vivem nas pequenas comunidades, sejam rurais, sejam urbanas. A leitura aqui é genérica, pautada em situar temas e destacar qualidades  da linguagem do autor. O que encontraremos, pois, em Contos da Minha Terra, de José Ribamar Garcia?
Empenhado em atender as transformações de nosso tempo, o sociólogo espanhol Manuel Castells demorou-se por vinte e cinco  anos em notações e estudos para explicar o mundo pós- moderno. Segundo ele, a revolução tecnológica e a reestruturação do capitalismo originaram a sociedade em rede que hoje conhecemos:
    A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes (...). Por uma cultura de virtualidade real construída  a partir de um sistema de mídia onipresente, interligando e altamente diversificado. E pela transformação das bases  materiais da vida- o tempo e o espaço- mediante a criação  de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes.
    Nesse contexto, uma das consequências mais notórias desse processo é o conflito de identidades. Surgem novos atores sociais, de “atuação fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os aparatos do Estado, redes globais e indivíduos centrados em si mesmos”
    O mundo ficcional criado por Ribamar Garcia está na contramão da sociedade em rede. Por esse motivo, não bastassem qualidades estilísticas que atestam a grandeza dos textos (a linguagem simples e envolvente, o lirismo  em prosa poética refinada, a ironia recorrente e a estilização do léxico e da sintaxe do piauiense, sobremodo),o autor transpõe para os contos aspectos da paisagem geográfica ,social e humana já desaparecidos ou transformados pela dinâmica das mudanças dos novos tempos. O compromisso de Garcia, nesse sentido, é também o compromisso com a memória coletiva, permitindo aos leitores um reordenamento de vivências de tempos e espaços menos controlados pelas relações de poder do que hoje o são.
     A função social do texto de Garcia revela-se, entre outras nuances, portanto, como compromisso com a memória dos meninos pobres em recursos materiais, mas ricos em sonhos  e perspicácia, no Piauí das décadas de 1940,1950 e 1960, sobretudo. Debruçando-se principalmente sobre esse tempo, os narradores de cada conto promovem um reencontro com as origens em uma terra de adversidades sociais, ainda que opulenta em belezas.
     Como forma particular de conhecimento dos acontecimentos do passado, consistindo da parte de quem rememora , a reativação e reordenação de episódios, em parte ou totalmente, de maneira verídica ou errônea, configura-se a memória, desse modo, em elemento vital de seu processo de escritura literária. Afinal, como enfatiza Joel Candau,”(...)A narrativa é lógica em ação-(...) a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter aleatório e desordenado para se integrar em um continuum o mais  lógico possível”(2011,p.74).

    Acrescenta o antropólogo que “toda conduta da narrativa produz, portanto, uma ilusão biográfica uma ficção unificadora”. Nesse particular, o texto transcende, pela manipulação da linguagem, a esfera do real, para atingir o estágio de fenômeno estético.   
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário