Hoje publico a crítica literária escrita pelo professor
Dílson Lages Monteiro sobre o livro Contos de Minha Terra de Ribamar Garcia,
grande escritor piauiense. O lançamento desse livro ocorreu no mês de
Outubro na livraria entre livros. A obra e´ uma
grande declaração de amor ao Piauí e um retrato de Teresina através da sua
gente. Apresenta folclore, humor, ironia e o jeito piauiense de ser.
Memória e identidade em Ribamar Garcia –III
Já se disse abundantemente, por meio das mais diversas
teorias, que nós leitores é quem, de fato, controlamos a obra literária. Diante
da carga polissêmica e polifônica do tipo de manifestação linguística em que se
constitui a literatura, nossos conhecimentos de mundo, nossos conhecimentos
técnicos, a experiência de leitura se sobreporiam ao propósito comunicativo do
autor, cujo controle sobre a obra seria radicalmente minimizado pela força de
múltiplas leituras, pelo tempo e pela história.
Façamos inicialmente uma
parênteses para discordar dessa assertiva, embora o leitor seja verdadeiramente
o grande personagem de toda e qualquer
obra – e disso, às vezes, nem se dê conta. Façamos um parênteses porque há autores (digo, obras),
cujo projeto literário vale tanto quanto o teor das interpretações individuais
autorizadas. Ribamar Garcia é um escritor dessa estirpe – o que escreve encontra
facilmente ressonância nos leitores. A cada livro, uma promessa convertida em
prazer.
O que materialmente esperamos de uma obra escrita por
Garcia, além de seu estilo de lirismo leve e do humor característico? Para
responder a essa indagação, não faremos exercício de crítica literária
propriamente dita. Não há neste olhar rigor metodológico, nem busca recorrente
de aplicar ou comprovar teorias para uma objeto, tampouco o foco na dimensão linguística dos textos, embora
sejamos obrigados , por forças das especificidades da literatura, a tangenciar
a dimensão discursiva da obra.
A leitura aqui é, predominantemente, a do prazer, das formas
-sons-cheiros, das impressões de um texto que atinge a emoção dos que viveram
ou vivem nas pequenas comunidades, sejam rurais, sejam urbanas. A leitura aqui
é genérica, pautada em situar temas e destacar qualidades da linguagem do autor. O que encontraremos,
pois, em Contos da Minha Terra, de José Ribamar Garcia?
Empenhado em atender as transformações de nosso tempo, o
sociólogo espanhol Manuel Castells demorou-se por vinte e cinco anos em notações e estudos para explicar o
mundo pós- moderno. Segundo ele, a revolução tecnológica e a reestruturação do
capitalismo originaram a sociedade em rede que hoje conhecemos:
A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação
do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede.
Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas
decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes
(...). Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente,
interligando e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida- o tempo e o espaço-
mediante a criação de um espaço de
fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites
dominantes.
Nesse contexto, uma das consequências mais notórias desse
processo é o conflito de identidades. Surgem novos atores sociais, de “atuação
fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os aparatos do
Estado, redes globais e indivíduos centrados em si mesmos”
O mundo ficcional criado por Ribamar Garcia está na
contramão da sociedade em rede. Por esse motivo, não bastassem qualidades
estilísticas que atestam a grandeza dos textos (a linguagem simples e
envolvente, o lirismo em prosa poética
refinada, a ironia recorrente e a estilização do léxico e da sintaxe do
piauiense, sobremodo),o autor transpõe para os contos aspectos da paisagem
geográfica ,social e humana já desaparecidos ou transformados pela dinâmica das
mudanças dos novos tempos. O compromisso de Garcia, nesse sentido, é também o
compromisso com a memória coletiva, permitindo aos leitores um reordenamento de
vivências de tempos e espaços menos controlados pelas relações de poder do que
hoje o são.
A função social do texto de Garcia revela-se, entre outras nuances,
portanto, como compromisso com a memória dos meninos pobres em recursos
materiais, mas ricos em sonhos e
perspicácia, no Piauí das décadas de 1940,1950 e 1960, sobretudo. Debruçando-se
principalmente sobre esse tempo, os narradores de cada conto promovem um
reencontro com as origens em uma terra de adversidades sociais, ainda que
opulenta em belezas.
Como forma particular de conhecimento dos acontecimentos do
passado, consistindo da parte de quem rememora , a reativação e reordenação de
episódios, em parte ou totalmente, de maneira verídica ou errônea, configura-se
a memória, desse modo, em elemento vital de seu processo de escritura
literária. Afinal, como enfatiza Joel Candau,”(...)A narrativa é lógica em
ação-(...) a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter aleatório e
desordenado para se integrar em um continuum o mais lógico possível”(2011,p.74).
Acrescenta o antropólogo que “toda conduta da narrativa
produz, portanto, uma ilusão biográfica uma ficção unificadora”. Nesse
particular, o texto transcende, pela manipulação da linguagem, a esfera do
real, para atingir o estágio de fenômeno estético.
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